[ Pobierz całość w formacie PDF ]
quase solenemente, que é poeta, e pretende manter-se, como tal, em seu direito. De
como S. M. El-Rei de Dinamarca tinha menos juízo do que Yorick, seu bobo. Doutrina
deste. Funda nela o A. o seu admirável sistema de fisiologia e patologia transcendente
do coração. Por uma dedução apertada e cerrada da mais constrangente lógica vem a
dar-se no motivo por que foi concedido aos poetas o direito indefinido de andarem
sempre namorados. Aplicam-se todas estas grandes teorias à posição actual do A. no
momento de entrar no prometido episódio no capítulo antecedente. Modéstia e reserva
delicada o obrigam a duvidar da sua qualificação para o desempenho: pede votos às
amáveis leitoras. Decide-se que a votação não seja nominal, e porquê. Dido e a mana
Anica. Entra-se enfim na prometida história. De como a velha estava à porta a
dobar, e embaraçando-se-lhe a meada, chamou por Joaninha, sua neta.
Este é o único privilégio dos poetas: que até morrer podem estar
namorados. Também não lhes conheço outro. A mais gente tem as suas
épocas na vida, fora das quais lhes não é permitido apaixonarem-se.
Pretenderam acolher-se ao mesmo benefício os filósofos, mas não lhes foi
consentido pela rainha Opinião, que é soberana absoluta e juiz supremo
de que se não apela nem agrava ninguém.
Anacreonte cantou, de cabelos brancos, os seus amores, e não se
estranhou. Aristóteles mal teria a barba ruça quando foi daquele seu
último namoro por que ainda hoje lhe apouquentam a fama.
Ora eu filósofo seguramente não sou, já o disse; de poeta tenho o
meu pouco, padeci, a falar a verdade, meus ataques assaz agudos dessa
moléstia, e bem pudera desculpar-me com eles de certas fragilidades de
coração... Mas não senhor, não quero desculpar-me como quem tem
culpa, senão defender-me como quem tem razão e justiça por si.
52
Almeida Garrett
Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadíssimo bobo de el-rei de
Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão
elegante pena, estou sim. "Toda a minha vida" diz ele "tenho andado
apaixonado já por esta já por aquela princesa, e assim hei de ir, espero,
até morrer, firmemente persuadido que se algum dia fizer uma acção
baixa, mesquinha, nunca há-de ser senão no intervalo de uma paixão à
outra: nesses interregnos sinto fechar-se-me o coração, esfria-me o
sentimento, não acho dez réis que dar a um pobre... por isso fujo às
carreiras de semelhante estado; e mal me sinto aceso de novo, sou todo
generosidade e benevolência outra vez".
Yorick tem razão, tinha muito mais razão e juízo que seu augusto
amo el-rei de Dinamarca. Por pouco mais que se generalize o princípio,
fica indisputável, inexcepcionável para sempre e para tudo. O coração
humano é como o estômago humano, não pode estar vazio, precisa de
alimento sempre: são e generoso só as afeições lho podem dar; o ódio, a
inveja e toda a outra paixão má é estímulo que só irrita mas não sustenta.
Se a razão e a moral nos mandam abster destas paixões, se as quimeras
filosóficas, ou outras, nos vedarem aquelas, que alimento dareis ao
coração, que há-de ele fazer? Gastar-se sobre si mesmo, consumir-se...
Altera-se a vida, apressa-se a dissolução moral da existência, a saúde da
alma é impossível.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, seu filho se o
tem, sua mãe se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse
homem é o tal, e Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há-de ser um maçador terrível. Talvez
seja este o motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de
andarem namorados sempre. O romancista goza do mesmo foro e tem as
mesmas obrigações. É como o privilégio de desembargador que tiravam
dantes os fidalgos, quando ser desembargador valia alguma coisa... e
tanta coisa!
Como hei de eu então, eu que nesta grave Odisseia das minhas
viagens tenho de inserir o mais interessante e misterioso episódio de
53
Viagens na Minha Terra
amor que ainda foi contado ou cantado, como hei de eu fazê-lo, eu que já
não tenho que amar neste mundo senão uma saudade e uma esperança
um filho no berço e uma mulher na cova?...
Será isto bastante? Dizei-o vós, ó benévolas leitoras, pode com isto
só alimentar-se a vida do coração?
Pode sim.
Não pode, não.
Estão divididos os sufrágios: peço votação.
Nominal?
Não, não.
Porquê?
Porque há muita coisa que a gente pensa e crê e diz assim a
conversar, mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e
nomeadamente no mundo...
Ah! sim... ele é isso? Bem as entendo, minhas senhoras: reservemos
sempre uma saída para os casos difíceis, para as circunstâncias
extraordinárias. Não é assim?
Pois o mesmo farei eu.
E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para
sempre assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão
celeste que me surpreendeu a alma por um modo novo e estranho, e do
qual não podia dizer decerto como a rainha Dido à mana Anica:
Reconheço o queimar da chama antiga
Agnosco veteris vestigia flammae;
posto que a visão passou e desapareceu... mas deixou gravada na alma a
certeza de que... Posto que seja assim tudo isto, a confidência não
passará daqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou
suficientemente habilitado para cronista da minha história, e a minha
história é esta.
54
Almeida Garrett
Era no ano de 1832, uma tarde de verão como hoje calmosa, seca,
mas o céu puro e desabafado. Á porta dessa casa entre o arvoredo, estava
sentada uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não
mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que apertava na cintura
com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e
das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos
de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e
posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da
mesma brancura, que tinha no peito e que afectava, não menos, a forma
de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da velha.
Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio: textualmente
parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro da
Madonna della Sedia.
Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar
aqui em parêntesis que, não há muito, vi em casa de um sapateiro
remendão, em Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados
piramidais, simples, sem nobreza, mas elegantes.
Tornemos à velhinha.
Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma
dobadoira, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter
às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.
Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso,
velha, cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de
António Ferreira (12) ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado
de Setúbal.
[ Pobierz całość w formacie PDF ]
Pokrewne
- Indeks
- C.S. Lewis La Sedia D'Argento
- Zeszyt Sutr
- Lawrence Block Keller 4 Hit and Run (com v4.0)
- Lesson Plan 031 Text
- Harlan Ellison Paingod & Other Delusions
- 603. Hudson Jan W poszukiwaniu utraconych chwil
- Feliks Koneczny Dzieje Polski opowiedziane dla mśÂ‚odzieśźy
- 06.Gray_Ginna_Decyzja_Cristen_Moore
- 02 Maureen Child Skarb gangstera
- Camp L. Sprague de & Carter Lin Conan Tom 15 Conan z Wysp
- zanotowane.pl
- doc.pisz.pl
- pdf.pisz.pl
- nie-szalona.pev.pl